O episódio do mini-budget e as lições no campo da política fiscal

No fim de setembro, o mercado foi surpreendido pelo anúncio de um ambicioso plano econômico por parte do governo da até então primeira-ministra do Reino Unido, Liz Truss, cujos pilares eram modificações na estrutura tributária do país e a ampliação dos gastos públicos para financiar abatimentos nas contas de luz de famílias e firmas.

Expectativas do Plano

A expectativa era de que a divulgação do plano marcasse o início de um novo momento para a economia britânica, que assim como seus pares na Zona do Euro, tem enfrentado uma dura batalha contra a inflação, concentrada no setor de energia, e o alto custo dos alimentos. A realidade, no entanto, foi totalmente oposta, com o plano sendo alvo de críticas por parte do mercado financeiro e gerando tamanha turbulência que resultou na saída de Liz Truss do governo pouco mais de um mês após sua posse. Os detalhes sobre este caso e a justificativa para seus desdobramentos podem ser encontrados no decorrer deste texto.

O que foi o Plano de Crescimento?

O Growth Plan (Plano de crescimento em português), que acabou recebendo apelido de “mini-budget” na imprensa internacional, seria responsável pelo maior corte de impostos no Reino Unido desde 1972 se trabalharmos com as cifras apresentadas no documento oficial do governo, além de promover sustentação dos preços de energia, principal vilão da inflação que atinge a Europa como um todo, via subsídio público.

A principal premissa neste caso era de que o governo seria responsável por induzir o crescimento, tarefa que seria feita em duas etapas distintas. Na primeira, o governo agiria de maneira a garantir a sustentação da demanda agregada no curto prazo via subsídio das contas de luz, liberando renda das famílias e permitindo que estes recursos fossem canalizados no consumo de outros bens e serviços.

Operacionalização do Plano

Isto seria operacionalizado através da intervenção do governo no mercado de energia, com o Estado injetando recursos para garantir que a conta de luz das famílias não ultrapasse o valor de £2.500 por ano durante um período de dois anos. Para as famílias que não possuem acesso ao sistema tradicional, o governo prevê o pagamento de uma taxa de aproximadamente £100. O governo também se comprometerá em renegociar o alívio das contas de luz de comércios, indústrias e demais consumidores não domésticos por seis meses, com eventuais custos adicionais sendo pagos pelo próprio orçamento público.

E em relação ao financiamento?

O financiamento de todo este esquema seria feito por um fundo de aproximadamente £40 bilhões, bancados pelo próprio Banco da Inglaterra e aplicado diretamente nas negociações com empresas de energia. O objetivo era garantir a liquidez destas empresas mesmo em meio ao atual cenário de incerteza no campo da oferta e inflação crescente, o que seria feito através dos bancos comerciais a partir do dia 17 de outubro.

No longo prazo, o Estado seria responsável pela promoção de mudanças que garantiriam a expansão da oferta, evitando pressões inflacionárias nos momentos em que a demanda estivesse demasiadamente aquecida. Isto incluía novos acordos com companhias elétricas, renegociados em melhores termos e novas rodadas de licenciamento para empresas dos setores de óleo e gás, cujo objetivo seria aumentar a competitividade no setor e reduzir o preço final dos bens e serviços para consumidores.

Modificações também seriam feitas na estrutura de tributação, cujo objetivo era permitir que o investimento privado migrasse para áreas consideradas prioritárias, como setores críticos da infraestrutura, planejando também ações que impulsionassem a geração de empregos, investimentos e aquisição de propriedade privada por parte dos agentes individuais.

Além das mudanças no ambiente de negócios, haveria também a redução de impostos para pessoas e firmas, que teria início com o corte do tributo pago para financiamento do sistema público de saúde nacional a partir do mês de novembro, assim como o cancelamento da introdução do chamado “Health and Social Care Levy”, tributo adicional que seria cobrado para engrossar o orçamento do sistema de saúde. Não obstante, o reajuste do imposto de renda cobrado sobre as firmas seria cancelado, mantendo-o em 19% a.a.

No caso do imposto sobre a renda, a expectativa do governo era promover cortes nas faixas de imposto sobre a renda das famílias a partir de abril de 2023, começando com uma redução de 1 p.p. A estimativa é que sejam injetados £5 bilhões por ano com isso. Já em relação aos de dividendos, haveria redução de 1,25 p.p. na taxa atualmente cobrada, cujo intuito é beneficiar o setor produtivo e estimular os investimentos de empresas. 

O sucesso do plano seria avaliado pela capacidade de crescimento de longo prazo, com o governo de Truss estimando uma taxa de 2,5% a.a., meta considerada ideal por ser conciliável com a manutenção da inflação dentro da meta de 2% a.a.

Como ele foi recebido e quais suas consequências?

O mercado reagiu mal a esses movimentos, com a libra apresentando a maior depreciação frente o dólar em mais de 50 anos dias após a divulgação do plano, o que obrigou o Banco da Inglaterra a emitir um comunicado no dia 26/09, onde afirmou que estava monitorando de maneira próxima o desenvolvimento do mercado, com ênfase na reprecificação de ativos e possíveis desdobramentos que poderiam gerar prejuízos ao conjunto da economia.

A instituição aproveitou o informe para garantir que estava comprometida em auxiliar o processo de restabelecimento do nível de preços do bloco, que tem como meta levar a inflação de volta para o patamar de 2% no médio e longo prazo.

A declaração, entretanto, se mostrou ineficaz, e a situação financeira do bloco continuou apresentando piora, o que incluiu a libra alcançando a paridade com o dólar norte-americano. Isto fez com que o Banco da Inglaterra fosse novamente acionado, desta vez com vistas a atuar diretamente no mercado de títulos.

Neste sentido, na manhã do dia 28/09, a instituição anunciou que passaria a fazer aquisição de títulos de longo prazo entre aquele dia e o dia 14 de outubro, visando normalizar os spreads daquela categoria de ativos, que foram os mais afetados desde a divulgação do Plano de Crescimento e vinham apresentando abertura significativa, o que poderia colapsar o mercado de títulos e inviabilizar não só as operações financeiras, mas o equilíbrio monetário do bloco, incluindo seu sistema de crédito e preços.

Ainda segundo a nota, a medida anunciada não modificava os planos anunciados no momento da decisão de política monetária, de maneira que a redução em 80 bilhões de libras do balanço do Banco da Inglaterra seguirá na agenda da autoridade monetária.

O então ministro das Finanças Kwasi Kwarterng, responsável pelo plano, acabou sendo demitido, com Jeremy Hunt assumindo o posto. Hunt até tentou restabelecer a credibilidade da política fiscal do Reino Unido ao anunciar a revogação quase que completa dos principais pontos do mini budget, o que acabou não surtindo efeito junto ao mercado. A pressão por parte do mundo financeiro, que vazou para a esfera social e política, fez com que Liz Truss renunciasse ao cargo de primeira-ministra antes mesmo de completar 40 dias no poder, tendo sido substituída por Rishi Sunak, que concorreu com Truss no pleito inicial para substituir Boris Johnson.

Hunt foi mantido no cargo e já anunciou que um novo plano fiscal está sendo elaborado e que será baseado em fundamentos bem distintos do mini budget, que proporcionou uma experiência que certamente nenhuma autoridade tentará repetir.

Lições do episódio e a importância da política fiscal na atual conjuntura

A sucessão de eventos apresentada acima nos ajuda a fazer algumas reflexões acerca da gravidade da atual situação econômica do mundo, cujo principal tema ao longo de 2022 foi o combate à inflação, que encontrou resposta em políticas monetárias restritivas que visam desaquecer o crescimento global e impedir que o nível de consumo privado seja responsável pela manutenção das pressões sobre os preços de bens e serviços.

Embora a perspectiva seja de que em 2023 esta temática siga em alta, o combate à inflação deve dividir o posto de protagonista no campo da economia com a condução da política fiscal, especialmente nos casos que envolvem a ampliação dos gastos públicos.

A justificativa para isto passa pelo fato de que políticas fiscais expansionistas possuem efeito direto sobre o desenvolvimento da inflação, uma vez que proporcionam sustentação ou até mesmo ampliação do nível de renda disponível dos agentes, que costuma ser canalizado para a esfera do consumo e impede a ação da política monetária em sua plenitude. Além disso, existe o efeito indireto deste tipo de medida, que pode ser visto pelo aumento do endividamento público e a eventual necessidade de manutenção dos juros em patamar elevado, o que costuma causar recessão econômica por período prolongado.

Desta forma, países que tentarem fugir do receituário descrito acima podem acabar sofrendo com uma reação adversa especialmente por parte do mercado financeiro. Como apresentado ao longo do texto, a decisão de ir na contramão dos países ocidentais no que diz respeito à condução da política econômica, adotando um plano fiscal expansionista em meio a um mundo onde imperam políticas monetárias restritivas mostrou que nem mesmo o Reino Unido, que possui o segundo menor nível de endividamento público entre os membros do G7 e iniciou seu ciclo de aperto monetário antes mesmo de Estados Unidos e Zona do Euro, está imune das imposições feitas dentro da atual conjuntura.

A fuga do modelo de juros elevado e desaquecimento da demanda foi respondida com uma penalização imediata via mecanismos financeiros, com destaque para o derretimento da libra e a desorganização do mercado de títulos de longo prazo, além de danos que não ficaram restritos ao campo monetário, atingindo também a vida política e social do Reino Unido, que deverá ter ainda mais dificuldades para controlar sua inflação, que beira a casa dos 10% a.a. e não apresenta sinais de arrefecimento. Isto obviamente não significa que políticas que visem a amenizar problemas enfrentados pelas pessoas cotidianamente não devam ser implementadas. No entanto, a adoção destas medidas no atual momento demanda cuidado adicional, o que inclui um desenho de escopo cuidadoso, com público-alvo e custo de implementação bem definidos, assim como eventuais fontes de financiamento ou nível adicional de dívida que podem acabar gerando, de maneira a prevenir os agentes de eventuais surpresas e manter uma comunicação clara e transparente acerca dos rumos da política fiscal do país dentro de um horizonte relevante de tempo.

Veja mais análises do nosso time econômico no Blog da CM Capital.

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